5.10.19

DE LONGE PARECE CERTO

Quando + próximo fica parece tão errado, você de longe parece tão certo. Você é cilada certa para meus pecados, o antídoto necessário para meu sintoma: amor. Algo em você denuncia caminhos possíveis para meu pior. Por amar o que não sei de ti, faço da dureza da vida tão-somente ponte, a passagem necessária para polir e desgrudar os excessos que me cegam e me mistura em ti.

De boas intenções transformei nossos corpos templo de rituais de mal-entendidos, de mal-dizeres e de uma vida sem palavra. A esperança não era você, era do amor que inventei em ti que me ajudava fantasiar o impossível e aprender a costurar os restos de cada encontro e desencontro das palavras, dos não ditos e dos nós de nós que hoje se transformaram em laços.

Amor você cortou as minhas asas, não me deixou ficar. Te amo pelas azas [z de azar mesmo] cortas, por fazeres de mim um anjo caído. Fim que fez furos, rasgos na brisa das certezas. Hoje respiro outros ares. Desaprendi o apreendido, aprendendo a voar com os pés no chão, mesmo que esse chão você também o tenha levado.

A vida de colisões de [des]encontros me atualizam, ando atormentado em saber mais de mim atravessado desses Outros, mesmo que esse saber escape e seja sempre não-todo. Prometi voltar para teus braços, mas hoje não posso mais ser oferenda, hoje já não posso ceder as tuas demandas, hoje ofereço-me por inteiro ao encontro, advertido que jamais existira completude.

A falta é meu calcanhar de aquiles. Pode me faltar tudo, só não me deixe faltar na minha falta. Queria te falar te amo quando terminamos, tê-lo em meus braços nunca foi um querer. A vida parece labirinto com infinitas armadilhas, se eu me perder me deixe encontrar caminhos novos por mim mesmo. O que procuramos em nós, não podemos nos dar.

Que eu ame sempre o que falta em ti, e crie maneiras novas de amar esse teu jeito tão singular de ser. Não sejamos nunca o efeito de 1/3 de bala, sejamos trem que por onde passa faz barulho e deixa rastros e restos de esperança que a vida é passagem, é cheiro de um passado que exige um toque de nos presentearmos com o agora.

É que parecia certo de longe, porque não existíamos. A vida é a possibilidade de amar o nosso caos, fazer desse perto a invenções, e deixar cair esse certo de longe, só é possível existir de perto. O resto é só imagem, e somos sempre mais que um corpo, somos palavra-linguagem.

Maicon Jesus Vijarva

30.9.19

O AMOR NÃO COLA, AMOR FAZ VENTO

O tempo é passageiro. Transita de cá para lá ao longe. O tempo faz furos nas ideias concretas, abandona o sujeito na herança dos restos e mal-entendidos de histórias e estórias por onde toca mesmo que longínquo. Casa-te com o acaso e surpresa e não terás uma vida tediosa, embora o tédio resida, quase que sempre, na curva dos excessos. 

Transeunte dos tempos líquidos, o sujeito sempre anota compromissos inadiáveis para não tropeçar com a falta que o amor convoca a cheirar, beijar, tocar, sentir e, sem qualquer pretensão já o assumindo de todo, a responsabilização de si no mundo. 

Amar não é sem dor, quem ama também ama o caos de existir, a diferença, o lugar indizível de si mesmo e, sem dúvida, do outro. O amor é dessas coisas inexplicáveis que precisamos dizer e repensar melhor todos os dias, no ato de escrever a si mesmo com suor e sangue vermelho fresco fervido de vida. 

Fugir do amor é sempre uma droga que vicia e devasta a cada afastamento dos encontros amorosos que a vida oferece. Amar não cola, amor faz vento. Vamos voar e descobrir nosso desejo de amar no mundo dentro e fora da gente.


11.9.19

A PO-ÉTICA E O INÉDITO NA CLÍNICA DE GILBERTO SAFRA

A po-ética na clínica contemporânea de Gilberto Safra [2004], publicada pela Editora @ideiaseletras, fornece à sociedade leiga e aos intelectuais do movimento psicanalítico elementos inéditos para o acontecer do ser do sujeito na sociedade a partir de diálogos de experiências com a inquietação dos seus pacientes baralhada com a inquietação dos escritores russos e seus personagens. 

Safra propõe em sua obra uma abertura de vértice, e chama a atenção para o espaço-tempo numa clínica de produção de sentido, de deslocamentos no campo do humano. Apresenta a posição ética de uma clínica contemporânea com o dizer, possibilidade que o sujeito encontra por meio da fala, desvelar quem é e o que vive. No entanto, faz alerta que o dito ao se revelar também vela. 

O afastamento do analista de seu ideal, para o real da sua clínica, traz acontecer po-ético possível. O ser humano não pode ser dito plenamente; entre o dito e o indizível o poético pode emergir. A partir desse vértice que a clínica de Safra faz seu inédito, o fluir da situação clínica testemunha-se o acontecer do falar poético, em que a palavra não se encerra, mas se abre para o não dito. 

A análise é a possibilidade de novo nascimento, nascer é ser atravessado pelas questões e pelo mistério da existência; é conhecer a posição humana e as condições necessárias à instalação de si no mundo com outros. É um conhecimento assentado no surgimento mesmo do acontecer humano. 

Um livro que possibilita pensarmos o acontecer humano, que em excesso de claridade e escuridão podem levar o sujeito ao sofrimento sem entorno, à loucura. E o sofrimento sem espaço e sem tempo pode levar o sujeito ao esgarçamento de sua própria condição humana. É um convide a refletirmos pela ótica de um conhecimento decorrente da maneira que acontece a entrada do sujeito no mundo e suas articulações para viver seu acontecimento e com outros.

9.9.19

ESCUTAR PARA ALÉM DE SI MESMO


A vida é um redemoinho de angústia. Safra em Po-ética na clínica contemporânea levanta questões a respeito da atitude do analista ao pedido da demanda de socorro do seu analisante. O que fazer? O que dizer? Não existe palavras que recomponha o sujeito que vive numa bacia-angústia.

A função de presença-ambiente proporciona ao analisante possibilidades de pensar melhor as rotas de sua vida. Refletir sobre as atitudes tomadas e aos poucos ir se responsabilizando pela angústia consequente dessas tomadas de direção. Viver é falhar, e falhar na ótica de nosso tempo é ainda visto como falta de desempenho, falta de foco e originalidade.

Muitas vezes conceitos saturados em psicanálise também produzem essa mesma ótica de um outro lugar. Em tempos de setembro amarelo em que todo mundo parece perceber a tragédia do humano, chovem frases motivacionais e esperançosas. A palavra pode fazer muito por nós humanos, mas nem sempre salva vidas num único mês, oprimindo e retalhando essas vidas durante todos os outros dias e anos.

Para Bion é necessário que sejamos capazes de aprender atentamente a escutar sem desejo, sem memória e sem ânsia de compreensão. Não há como compreender um sofrer por mais avançados que sejamos em teorias ou técnicas para aliviar sintomas. Não podemos esquecer que a vida é um sintoma primário de um sujeito. E muitas vezes viver é aprender a criar com esse sintoma que nos provoca a morrer todos os dias, não pelo ato final. Há diversas maneiras de morrer em vida.

O sujeito mata a si mesmo de diversas formas sem alcançar o seu ápice. É por isso que não basta testemunhar a dor do outro, é preciso muito mais que ouvidos. É preciso escutar para além de si mesmo. E quem suporta colocar-se a escuta da dor do outro sem palpitar ou dizer que sofre na mesma medida ou pior ainda?

3.9.19

ACONTECIMENTOS


Às vezes a vida será vendaval de notícias que tiraram os pés das perdas. As mãos servirão como possibilidade de criação. Outras, conheceremos o pior em sua face mais canibal. A vida nunca disse que seria um mar de rosas. Muitas vezes é preciso de um outro que possa ter ouvidos aguçados para escutar o tom do som da voz ao ecoar [escoar] palavras de um dizer. Sujeito que possa acolher nossa dor sem desmerece-la até que tomamos autonomia na escuta do que escorre de dentro das palavras que tenta descrever o indizível de uma falta, um vazio.

Talvez, o que precisamos é de menos pessoas com boas intenções, e mais de pessoas que compreendam a imensidão do próprio vazio, da falta que é impossível de caber numa palavra. Às vezes é preciso cair em si mesmo, ralar-se todo e sentir a importância do peso da própria existência. Às vezes o que menos precisamos ouvir é que vai ficar tudo bem. O pior... mais ainda, diria Lacan. Não se trata de dizer que não há beleza na vida, pelo contrário. É reconhecendo a magnitude da morte que podemos dar vida a nós mesmos.

Às vezes o que precisamos é de um Caminhe, vamos aprender juntos a fazer melhor com os ACONTECIMENTOS da vida, porque ela não tem remédio que dê conta do que é impossível de nomear. Mais ainda, que possamos sempre estar advertidos que a vida nos exige muito, e que a conta sempre chega para todos!

Que possamos aprender a falar para criar palavras e inventar maneiras de dizer o que angústia, o que torna a vida insuportável por algumas temporadas. Que além disso tudo, possamos sempre reaprender a língua do amor, mesmo em tempo de escassez. Fale pela música, pela poesia, pela literatura, atravessado de um amor passado. É falando que aprendemos muito de nós mesmos, sem querer querendo.

Um abraço, 
Maicon J J Vijarva
imagem: Last days of summer - @iammoteh

27.8.19

#RESENHA - O Pai da Menina Morta

Autor: @tiago_ferro

O livro escreve sobre o que atravessa o nosso cotidiano: a ausência, o tempo, o amor, o ódio, a raiva, a morte, a melancolia que gradativamente ganha corpo depressivo e que faz poesia-drama-comedia-notícia-palavra. O livro me faz lembrar do filme beleza oculta, que soa até um tanto que auto-ajuda, mas está longe de ser, porque falar da vida é falar também da morte, do tempo e sem dúvida do amor. Há amor na morte?

O tempo é uma invenção do amor para saborear e suportar o caloroso e friorento abraço da vida enquanto a morte chega a passos cavalesco de tartaruga. O tempo é como amor, sem conceito que o defina, é sem lugar definido e está sempre onde não se imagina. O amor causa desejo pelo tempo em se fazer existir enquanto a morte não chega para fazer arte.

Às vezes precisamos aprender a ser novamente estranhos para tocar nossa intimidade com a solidão. Tiago mostra numa forma de beleza oculta que a morte não aceita trocados, barganhas, recompensas, ela chega sem avisos, entra sem ser convidada e toma os corpos que pulsão. A morte não ensina como morrer, como a vida, só se aprende com a experiência.

Há um ocultismo belo nas palavras, por sempre mostrar um dito outro em seu avesso. O amor nos faz alcançar o pior de nós mesmos para observar o cometa que racha o céu em nuvens de algodão doce. O amor toca o nada, que mostra a dimensão assustadora da nossa falta que fala de dentro do nosso vazio que tentamos tamponar.

Lutar contra o amor é morrer abraçado em formato de um feto no colo da vida. As lágrimas também fazem palavras. Existem milhares de palavras numa lágrima. O pai da menina morta é a chance de dizer que é importante que possamos dar forma a nossa dor e sofrimento através das palavras, sempre inundadas de nós, deixando o sangue em cada letra que se escreve, fala.

Que possamos transformar o que dói em palavras, arte!

Obrigado @tiago__ferro por sua escrita, e @todavialivros por acreditar na expansão dessa obra espetacular.

23.8.19

sei lá, talvez seja nada disso

A vida é ramela nos olhos. Ainda ontem te vi sorrindo no ônibus, alguns minutos do desembarque no terminal. Foi quase que um sentimento terminal que me abraçou as pernas. Ou foi o coração, que me quebrou as pernas? Você tem o místico de me deixar sem oxigênio nos pulmões por dois longos minutos. Quase uma vida inteira.

Amor é teorema que nunca se completa, ele fica ali repousado em busca de uma nova face para se reinventar. Sei, eu tô avisado de que não mais existirá a junção da nossa singularidade: o laço da nossa pluralidade. Nossas vidas estão tão baralhadas de futuro, passado e presente que não sei qual via me desvia de você. Sempre tropeço em você em nome do amor.

Não vou negar, tenho apreciado a falta que tu me faz. Talvez essa falta me faz percebe que precisava de ficar mais íntimo comigo mesmo. Estive tempo demais com você. Quiçá possa ser uma questão. O que me atropela a vida é alcançar o saber que esse texto fala mais da degradação de uma intimidade com o Outro, que como garoto mimado desamparou.

Um Outro que é familiar, embora tenha a forma de um estranho que encarna em meio ao corpo e a alma produzindo uma linguagem que me faz falar de você para refletir mais sobre mim. O amor é travesti, é inconsciente sem sexo, sem corpo, sem gênero e faz da gente turbilhão.

Eu sei lá, pode ser que não seja nada disso, talvez seja tudo loucura. Pode ser que seja só um delírio Sei lá, gosto de brincar com as palavras!

17.8.19

fazer análise é reconhecer e criar

Perder o passo acelerado, espreguiçar os tecidos rígidos na análise é coragem para aprender a caminhar, coragem que amarrota o pano firme do corpo, que abrem portas para que os furos sempre existentes, antes tamponados, assumam sua forma original fazendo ato: criação.

O processo de transferência em análise desfarela as certezas, convoca o sujeito a borrar, a desconfigurar para fazer coisa outra com o que fica, resta e assume formas novas. A psicanálise é a peste que convoca a sexualidade, a política e, mais ainda, a palavra ao discurso. Mas palavra é pecado, quando liberta dos semblantes do pai comum ao pai divino.

Se a psicanálise convoca a palavra, convoca também as figuras demoníacas do inconsciente do sujeito: o desconhecido familiar. Na tentativa de se justificar em análise, o inconsciente brinca, faz atos falhos e repetições com palavras e enredos quase que despercebidamente.

A análise é mais que falar de si mesmo, é falar de um outro que nos faz sentir a nós mesmos. Quase sempre sendo esse outro a sombra das dores e sofrimento que não cessa de criar palavras, quando não mais existe sinônimos.

É na análise que se aprende as praticidades da vida, a organizar os espaços, a fazer novos laços e reparar antigos. Fazer análise é aprender a criar palavras, coisas e a vida, é também se reconhecer em tudo isso inconsciente.

Porque análise é vida
Vida é amor
Amor é humano
Humano é falha
Falha é vida.

17.7.19

descascar de si mesmo

Descascar laranjas não constitui trabalho simples. Há necessidade de criatura arteira – arte de insistir em presença dos pequenos fracassos – em fazê-lo melhor e bem feito. É inoportuno conceber de qualquer jeito; há de se ter cuidado no improviso do manuseio de uma faca, para a circulação precisa nos movimentos dos cortes, caso seja por miséria de tempo. 

Fitando o cuidado da mãe em descascar as laranjas e nos olhos suspensos num tempo outro daquele momento, o garoto com receio de tirá-la de si, questiona: para que tanto trabalho em arrancar as cascas de uma laranja? Suspensa no tempo, ainda que tivesse na alteridade daquele momento, ela volta em si e responde: aprendi com seu avô, ele gostava de ver as laranjas descascadas com cuidado, deixando o mínimo da brancura para protege-la. 

Descercar laranjas não constitui trabalho simples. A brancura que se falava era o albedo: última “pele” que agasalha o interior da laranja. Interior coeficiente de reflexão, refletividade difusa ou poder de reflexão, camada fina o mínimo para servir bem a si mesmo, a família e as suas visitas. Assim também não seria nós, humanos, na constituição de laços consigo mesmo e com o outro? 

Brancura de um véu albedo que protege, para que seja possível saborear o não-todo de uma coisa à outra, de um tu em mim, de um mim em tu, velados por um limite necessário para não se dissolver no todo – do outro? –; embora seja impossível. De uma maneira ou de outra, há sempre uma falha, um rasgo, um descuido no manuseio da faca no movimento do corte no coeficiente albedo de uma reflexão. O corte é inevitável, não há como fazer suturas nas vesículas interna de uma laranja, mas é possível aprender a saboreá-la com cuidado ao digeri-la. Assim não poderíamos ser na vida, mãe? 

A mãe é acesa ao seu tempo e olha com mais carinho para o tempo de menina sonhadora na presença de um pai misterioso e ignorante de sua sabedoria cotidiana. Ou será que tinha consciência desse saber? Sei lá, talvez a vida seja só um detalhe, um inventar que tentamos escrever quase sem palavras, mas não sem elas.

Maicon Jesus Vijarva

12.7.19

resto que permanece ressoa

Em seu pior momento da vida, encontrava-se em estado esgotável da natureza humana. Nesses agraves, necessitava deixar escoar até a última gota do insuportável de sua tristeza. Extenuado e sem qualquer ânimo, trajava o seu horror ao se colocar em convívio social. Não havia energia para opinar ou pensar nos adornos de amor próprio para seguir bem arrumado aos olhos dos Outros. Era só mais desserviço com ele mesmo, mais uma traição para conta. 

Perto demais de ser petrificado, foi capturado pela imagem dos passantes e vê em cada um deles o seu horror refletido. Pressentiu uma leve pontada de angústia no peito, achou que fosse um AVC. Para seu azar, não era. Em estado de vertigem, cobiçou embarcar em qualquer ônibus para mudar a rota e se livrar de tudo que estava alcançando. 

O sofrimento é mais latente e estranho de caber nas palavras, mas sabia que era respeitável apostar na criação de palavras para não enlouquecer em si mesmo. Era através desse esforço de se fazer dizer, que inventava laços para além do habitual. Necessitava do toque de um outro, alguém que pudesse oferecer um olhar mais amável e menos sufocante para escuridão. 

De dentro da tempestade é possível se fazer saber sobre o indomável de nós mesmos. Precisava embarcar no próximo ônibus, que indicava para direção da responsabilidade com a própria história, com o acaso e a surpresa que a vida trouxe e trará. Detalhes irão transformá-lo pouco a pouco, não por completo. O passado faz sempre presença, e sabe que caberá a ele fazer melhor com isso que se desenrola no depois que se escreve sem sua vontade. 

O ônibus chega, reluta aflito se será capaz de suportar o caminho. O medo de ser medíocre era mais ululante que fracassar. Desatento, entra e se senta com vontade de desistir. Acelerado, percebe lentamente o ônibus ganhar movimento, já não dá mais para fugir. Nem tudo está perdido, depois de uns tombos, perdas e lágrimas salgadas, pode-se saborear o amargo do saber que emerge de retalhos que ficam, na tentativa de criar coisa outra para se fazer existir. O resto que permanece ressoa certo mal-entendido, sensato contorno que implica desejo e um provável impulso para o próximo ato.
                                         
maicon jose de jesus vijarva
txt escrito para @aconfrariadostrouxas. 

5.7.19

diabetes: a doçura acumulada


Na alteridade do seu interior, ela sentia uma responsabilidade em viver. Embora a conta jamais fechasse, ela levava a vida sempre a se cobrar sob o grande olhar do Outro. Ainda que soubesse lá no fundo, confiava que esse outro não fosse a sua própria criatura, mas algo que fazia morada do lado de fora de si. Mulher profunda, uma grande menina sonhadora. A realidade sempre fora cruel, mas não mais que ela consigo mesma. Ela conseguia se ferir mergulhando de cabeça no ideal que a matava pouco a pouco. A religião foi sua aposta de volta por cima, na reviravolta que a vida sempre lhe trazia como oferta de ressurreição. No entanto, estava tão mergulhada nas palavras que soavam seguras da boca dos lobos vestidos de cordeiros, que o inquietante estranho que a habitava se transformou em inimigo declarado. A vida sempre fora injusta, mas ela não se poupou em fazer pior por si mesma. Escriva sobre si em fragmentos que ressoavam entre a carne, alma e o que imagina ser ou vir a se tornar. Tudo era muito profundo e ela insistia mesmo permanecendo por si mesma afogada em seu estomago, inundada pela doçura que economizava nos dias de vida. Havia muita doçura acumulada, ela não contava que essa mania obsessiva de acumular se tornaria uma diabetes mellitus tipo 1. As complicações foram de certa maneira uma espécie de alívio. A vida lhe era muito cara, e ela já não produzia mais insulinas criativas para sustentar o seu corpo simbólico. A vida nos exige e é necessário tolerar o cair do símbolo, para que o simbólico se reproduza de outras maneiras menos sorrateiras no corpo que tenta recitar palavras que ainda não existem.

um abraço, 
Maicon Jesus Vijarva

2.7.19

DIAS COMPRIMIDOS

Desabraçar o que mais se amava, às vezes é a forma mais lúcida de amar. Não se trata de uma questão de escolha, talvez seja mais por sobrevivência mesmo. Você certamente já deve ter convivido com esse assombroso sentimento de limite entre viver ou morrer simbolicamente. Talvez a saúde física seja mais consequência de alguns não que aprendemos a dizer mesmo com medo de que tudo desmorone. 

Dizer não dói na pele, faz furo impossível de tamponar por toda alma, ressoa os equívocos no simbólico do corpo. Esvazia dos excessos. O dizer velado nessa palavra minúscula não é qualquer, tem peso e medida, e há o risco de que tudo escorra pelo ralo no mal-entendido que ecoa em som pesado no próprio ouvir e no ouvir do outro. 

Recuso ficar adormecido, tudo na vida tem limites. Viver dias compridos e tentar comprimir a realidade deixando-a minúscula com os efeitos desse comprimento positivista e passivo é o atentado mais massacrante que pode-se tentar contra si mesmo. A vida não tem nada de bela, mas desejar não sentir a dor socando goela abaixo uma substância não tornará a vida mais bela mas mais ainda o pior do seu horror. 

Prefiro continuar a ser esquizofrênico por inventar uma realidade paralela ao ter que me sujeitar a esmagar os meus dias em comprimidos que dizem poder salvar-me de mim mesmo. Isso é blasfêmia. A vida urge e exige de cada um de nós o mínimo: aprender a falar do que dói, e não onde dói; a tentar dizer mesmo que não existam palavras. 

Se fomos tão criativos em criar um comprimido que alivie o sintoma, podemos muito bem aprender a salvar a nós mesmos através dos mal-entendidos que aprendemos a ouvir quando aprendemos como falar melhor para nós mesmos e, como consequência, também para o outro. 

Talvez, mas talvez mesmo... a análise seja para o psicanalista a aposta de que o sujeito aprenda nos dejetos de sua fala endereçada ao analista, aprender a falar com o que resta do dejeto da fala faltante do seu vazio. E meu caro, o que resta é sempre o pior, e haja sabedoria para criar desse lugar.

Maicon Jesus Vijarva

21.6.19

O AMOR É SINTOMA QUE IMPLICA A FAZER MELHOR COM O PIOR


Querido amor, desde o dia que resolveu me deixar... eu fiquei sem equilíbrio nos pés para sustentar o caminhar. Estou cambaleando de cá para lá na esperança de tropeçar em ti e desmoronar em teus braços ao contornar a próxima esquina. Quero me despencar em pecado se for necessário para me deliciar da sua impureza. Será que alguém iria entender essa sacanagem que me faz ajoelhar todos os dias? Te amo a ponto de querer me tomar de ti para que não caia em tentação em se render aos meus desejos. Peço que venha, mas desejo que nunca diga sim. 

O meu fim constituiu em você realizar todos os meus caprichos e picotar a imagem que ficou de nós. As palavras viram carne quando ressoadas por mim, meus lábios espumam e vomitam sangue vermelho vida. Sinto-me tão miserável em parar meu mundo por esse sintoma que faz flashblack de um passado que sequer vivemos. Ei, meu amor... preciso te contar que estou abandonando a gente, deixei tudo no teatro em que nos conhecemos. Ou seria essa mais uma das minhas tentativas infrutíferas de ensaiar a despedida que nunca acontece? 

Caramba, o que tu levaste de mim que sequer eu mesmo tenha noção do que se foi com sua saída repentina? Certeza que o álcool te salvou das lembranças boas e permitiu que fosse homem o suficiente para partir sem que eu fizesse isso por você. Mas queria eu ter partido, porque esse era também o meu maior problema ao me confundir com ti. Nunca tenho coragem de partir por mim mesmo. O outro sempre se figura divino e me faz ajoelhar buscando perdão por erros que jamais empreendi. 

Por isso desejo em tão alto grau cair em tentação, conhecer a maldade que poupei por anos e que sorria para o mundo como bondade ao outro enquanto queria eu que todos experimentassem o que há de mais horroroso em cada um de nós humanos. Amar é tão abstruso que nos faz encarar de frente o nosso pior! Sorte foi a minha que tenha nos partido em vários pedaços e me deixado com o resto que ficou de mim para minha responsabilidade. 

O resto é sempre o processo mais caloroso que um ser humano pode trabalhar o seu próprio dejeto e reciclar o que ainda pulsa vida: a palavra que faz a carne viva sangrar pela boca na tentativa de fazer saber sobre o que nos amarrota a vida.

Maicon Jesus Vijarva

NADA SERÁ COMO DEPOIS

Ernesto Artillo
O amor faz presença não-toda, para amar é preciso fazer mais com o significante Eu te amo. Não se ama como a nós mesmos, se isso fosse possível seria catastrófico. Bem sabemos como amamos a nós mesmos: sempre da forma mais trágica por sermos apaixonados pela ignorância. Desse lugar-não-todo o amor instaura o Outro como fonte de implicações, de questionamentos. Quando se ama a ignorância se torna implicação, deixa de velar nossas fragilidades para colocá-la na mesa e servisse do horror de si mesmo enquanto se ama. Freud faz saber dessa questão quando diz que a demanda de uma análise é sempre de amor. O amor ensina o quanto gozamos mal, e que não amamos mal só o outro mas a nós mesmos. Amar não é dar limite mas reconhecê-lo ao ser somatizado pelo amor. Amar não é ver qualidades no outro, mas perceber que algo falha e que há uma enorme falta na estrutura dos amantes, que por tal existir inviabiliza tornar 1+1=1, e ainda sim fazer movimento para insistir nessa via de mão dupla que faz borrão e desencontros.

Amar é tarefa difícil, não amar é cataclísmico. Amar é desejar ser amado, embora se insista quando o outro falta. Mas o amor não se sustenta apenas pela falta de um, é necessário que o outro coloque sua falta em jogo. Quando ambos desejam amar, e não apenas ser salvo pelo amor do outro. Amar é ceder algumas vezes para compreender que o vazio do outro também precisa de amparo. Amar não se trata de amenizar o desamparo do outro, mas esse desencontro no encontro do amor possibilita tocar o mais criativo que existe, porque amar toca o que nos inquieta: a vida. Por isso que amar sempre beira o caos, é na ralação da experiência de inventar o amor que se aprende novas formas de amar a mesma pessoa e, mais ainda, a amar a si mesmo atravessado do que resta da experiência de insistir no amor. O outro nos salva de amá-lo como a nós mesmo, para que se possa reconhecer as novas formas de amar para além de nós, a do outro que nos possibilita conhecer o vazio e falta que nos habita e faz sintomas. 

Maicon Jesus Vijarva

12.6.19

Fevereiro - Matilde Campilho


Escute só, isto é muito sério.

Anda, escuta que isso é sério!

O mundo está tremendamente esquisito. Há dez anos atrás o Leon me disse que existe uma rachadura em tudo e que é assim que a luz entra, não sei se entendi. Você percebe alguma coisa da mistura entre falhas e iluminação?

Aliás, me diga, você percebe alguma coisa de carpintaria? Você sabe por que meteram um boi naquele estábulo ao invés de um pequeno rinoceronte? Deve ter tido alguma coisa a ver com a geografia. Ou com os felizmente insolussionáveis mistérios que só podem vir do misticismo asiático. Um boi é um bicho tão… inexplicável. Ainda bem.

O amor é um animal tão mutante, com tantas divisões possíveis.
Lembra daqueles termômetros que usávamos na boca quando éramos pequenininhos? Lembra da queda deles no chão?

Então, acho que o amor quando aparece é em tudo semelhante à forma física do mercúrio no mundo. Quando o vidro do termômetro se quebra, o elemento químico se espalha e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas. Mercúrio se multiplicando. Acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis para o amor.

Ah é! Eu gosto de você. A luz entrou torta por nós a dentro, mas, olha, eu gosto de você! A luz do verão passado quebrou o vidro da melancolia e agora ela fica se expandindo pelas ruas todas. Desde aquele outro lado do Sol até esse tremendo agora.

Hoje ainda faz bastante frio. As cinzas ainda não aterraram sobre as cabeças disfarçadas, tem gente batucando suor e cerveja pelas ruas de nossa cidade sul. Na cidade norte, há ondas de sete metros tentando acertar no terceiro olho dos rapazinhos disfarçados de cowboys.

[suspiro]

O mestre ainda não veio decretar o começo da abstenção e, olha, a luz ainda está conosco. Sim, o mundo está absurdamente esquisito. Já ninguém confia nas imposições dos prefeitos, a esta hora na terra é um tanto carnaval, um tanto conspiração, um tanto medo. Metade fé, metade folia, metade desespero. E, provavelmente, a esta hora, uma metade do mundo está vencendo e a outra metade dormindo, há ainda outra metade limpando as armas, outra limpando o pó das flores. Mas, por causa do que me ensinou o místico, eu acredito que exista, agora, alguém profundamente acordado. Alguém que esteja vivendo entre o intervalo tênue entre o sonho e a agilidade. Suponho que ele saiba perfeitamente que este começo de século será nosso batismo do voô para nossa persistência no amor.João molhou a testa de Manuel. Os gritos das ruas molham as testas de nossos corações.

De que lado você está, eu não me importo! De que garfo você come, de que copo você bebe, que posto certo você escolhe, qual é seu orixá, seu partido, sua altura, de qual de suas cicatrizes cuida, que pássaro você prefere, quem é seu pai, qual é seu samba, Pinot noir ou Chardonay, que protetor você usa, qual é sua pele, seu perfume, qual político, quantos amores você sonha, em que Fernando, em que Ofélia, em que cinema, em que bandeira, em que cabelo você mora, qual dos túneis de Copacabana. Rezo para seus santos quando atravessar.

É… é impossível viver no país de Deus. Isso eu te dou de barato. Mas, atravessar o gramado de Deus em bicicleta, isso não é impossível, não.

Escuta, isso é sério!

Andamos crescendo juntos, distraidamente. As árvores crescem conosco. Nossa pele se estende, nosso entendimento, teso, também. O século cresce conosco. O amor pelas ventas da cara do mundo, também.
Quanto a um pra um entre nós dois, isso logo se vê. Não sei nada sobre a paixão, suspeito que você também não. Mas, começo a entender que o compasso da fé está mudando a passos largos. Dois pra lá e dois pra cá.


Portanto, escute.
Isto é muito serio!
Isto é uma proposta aos trinta anos.

Agora que o mercúrio assumiu sua posição certa, vem comigo achar o meu trono mágico entre a folhagem. E, no caminho até lá, vem dançar comigo, vem!

Matilde Campilho - Fevereiro

31.5.19

O FIM CHEGOU ÀS AVESSAS

Nino Cais
Faz um tempo que nosso amor se transformou na fotografia nunca revelada do seu porta-retrato invisível que ficava na sua cômoda vermelho bordo. O seu quarto era de tom nublado, de uma frieza ímpar, mas de sons aconchegantes quando tu se fazia presente pelo desejo de ser querido. Detestava sua cortina de tom laranja brega, embora era ela que fazia mesclas de tonalidades incomuns daquele cômodo estreito mas proveitoso para nossos encontros amorosos. 

Estávamos sempre em desencontros mesmo que na ralação do amor que nos unia. Era belo mas apavorante como queria ser livre se prendendo as ilusões. As aventuras dos quartos dos hotéis deixavam marcas de excitação e desejo em alcançar o desconhecido que desses encontros se fazia existir. Engraçado é saber que o nosso hotel favorito tinha os tons bregas da cortina do seu quarto, e fazíamos amor pela manhã entrelaçados com a preguiça, com o desejo de permanecer ali mas com a insistência das obrigações do dia que ecoavam em nossos ouvidos. 

O café da manhã me bastava um cafezinho, e você sempre se empanturrava de tudo que o hotel nos oferecia. Não dá pra desperdiçar, você dizia... eu amo comer. Que bom, pensava eu. Não sinto fome, me alimento do nosso amor pela manhã. Mas às 10:00 me abasteço de um pãozinho e mais um café para saborear as lembranças de cada quarto daquele hotel, branco e canta a metrópole interior. Meu interior estará sempre cheio de ti, embora não mais de perto. A vida e minhas palavras às avessas que diziam vá, querendo que você ficasse, fizeram dança e fomos nos afastando. Mas há tanto de mim em você, que me faz lembrar as razões por te amar e te odiar tanto. 

A recepcionista do hotel tropeçou em mim enquanto caminhava solto em recordações pela rua, e me perguntou porque não tinha mais meus encontros com você no hotel. Disse para ela que estamos em desencontros, nos encontrando com novos amores. Ela sorriu, e me disse que a vida é uma loucura, que precisamos aproveitar o que nos faz bem zelando para não nos destruirmos com o fim de tudo que é bom. 

Sorri, e disse preciso ir. E tenho seguido a vida, insistindo, buscando tocar o que me inquieta, embora sempre chegue alguns minutos depois. Lacan estava certo em suas considerações, não há só desencontros com o amor, mas com o que nos faz desejar. Talvez seja a morte o momento de tocar e brincar com a imagem final desse quebra-cabeça.

8.5.19

MÃE IDEAL HEROÍNA NÃO EXISTE


A função materna é um dos papéis mais complexos que uma mulher pode assumir. Deixar cair o ideal nunca foi tarefa fácil para elas, ainda mais em nosso tempo. A problemática é que muitas mulheres defendem esse ideal que não somente elas, mas como seus filhos acabam por adoecer desse delírio coletivo instaurado. Amar, cuidar, zelar e tantas outros significantes são demandas que sufocam a mulher. Antes elas sofriam sem palavras, hoje elas podem fazer melhor com as questões com o ideal, desconstruindo-o com implicações sob suas experiências às voltas desse impossível no limite que a palavra oferece.

A mulher por ser não-toda pode ensinar aos homens o quanto é impossível de alcançar esse ideal que o homem vive a criar para dar sentido à vida. Sentido esse que não suporta tocar o real da realidade. Não há sentido na vida, o que há são possibilidades de significar os significantes que dela tocamos. Uma mãe aprende essa função na experiência com não-todo humano que toca seu ventre, toca seu coração, a sua vida. 

O sujeito sofre por querer alcançar um ideal que jamais poderá, porque sua história de vida e a própria vida implica um avesso ao ideal estabelecido. Os joelhos, cotovelos, testa, nariz e o corpo todo ralado são acasos e surpresas da vida para ensinar sobre o real, sobre o que é verdadeiro diante desse impossível existir. Os acontecimentos não são um impedimento, mas um aviso que a vida exige mais de cada um de nós.

A mãe não sabe que sabe de tudo isso, mas toca esse saber quando deixa cair o impulso de impedir que o filho nasça para o mundo com os tombos da vida. Ela não é uma mãe ideal por assim ser, ela está aprendendo sobre o próprio narcisismo a tocar o próprio mundo e aprender de novo a tocar o mundo do outro de um outro lugar. Lugar esse que jamais terá uma fórmula, receita ou qualquer coisa do gênero, senão pela experiência de estar sendo enquanto toca esse impossível do real: viver a vida.

Um abraço, 
Maicon Jesus Vijarva

22.4.19

192


A gente repara que está gozando mal, quando fisga o desejo de viver inundado de um sentimento que não cabe numa única palavra, é quase como estar à beira de uma grande perda e agir com indiferença apostando que nessa deriva estaríamos a enganar a morte. No entanto, ainda não se trata disso, mas é necessário insistir nessa escrita, mesmo que ela não leve a lugar algum. Embora sempre esteja movimentando para um não-lugar. O que se percebe na perda não é necessariamente sobre o corpo físico que se relaciona cotidianamente, é mais sobre o que ultrapassa tudo isso.

É sobre algo que coça a alma, faz barulho e toca o vazio, a falta. A sensação dessa coisa que talvez seja difícil de ser dita, se assemelha ao engolir em seco, que faz tremer o corpo e parecer que exista milhares de borboletas dentro do estômago querendo sair pela boca ou um grande bicho querendo nos devorar por dentro. 

Medo. Medo de perder, não o objeto em si, mas algo da ordem do simbólico que pode emergir na ausência desse objeto. Os significantes desse significado que implica a vida. A independência convoca a cada um a se haver com o desejo e a se responsabilizar pela própria castração. Essa última que puxa o tapete e que ao mesmo tempo causa inquietação, que toca o desejo e implica a insistir em inventar uma saída, um plano B. Que possa talvez ser apenas algo para proteger a si mesmo do superego.

É quase como estar frente ao amor da sua vida e ter que se despedir por não saber se haverá uma próxima vez. Cada beijo, cada afago, cada cheiro, cada abraço, cada momento são impossíveis de ser revividos. A vida nos mostra que há um avesso, e esse avesso cobra caro pelos desperdícios. Na análise se aprende muito sobre a própria castração e, mais ainda, aprende a fazer melhor com o tempo. É sempre no fundo do poço que se pesca a sonoridade dos dizeres do inconsciente. 

Quando se perde não se está perdendo só isso. Se perde muito mais do que se imagina saber de imediato. Quem aprende a perder, aprende não sobre a ganhar, mas a reconhecer o valor de um vínculo, de um laço. Seja ele com o outro ou consigo mesmo. É mais, é saber que a vida é uma aposta, e quase sempre se aposta muito pouco no próprio desejo. 

Mais ainda não é sobre isso, é sobre o desespero de aguardar enquanto acredita estar perdendo algo que não se sabe a dimensão desse laço dentro de si mesmo. É o desespero de se ver castrado diante da vida e ainda sim insistir num plano, numa saída.

192 provoca o desejo em viver melhor.
O inconsciente dá sinais, até demais. Desejar é coisa séria, requer fôlego e insistência. Não dá para ficar desperdiçar o tempo, mas é necessário ter cautela. 

Um abraço
Maicon Jesus Vijarva

25.3.19

DOS TOMBOS SE FAZ O SUJEITO



As bebedeiras das ideias midiáticas de outrem parecem nos trazer a ilusão de eliminar os sentimentos de angústia quando entramos em contato com o estranho que nos habita. Falar em nome própria custa muito mais que alguns trocados na conta bancária; custa sustentar e se responsabilizar pelas consequências dos efeitos que se produz enquanto se conquista o espaço ao sol.

Não é possível ser alguém sozinho. A família, as amizades, as parcerias, o analista entre outros que partilhamos a vida, são peças fundamentais para a construção do que estamos nos tornando. Os que passaram em nossa vida e não puderam ficar, tiveram os seus ciclos e ficaram o tempo necessário para mostrar na prática o que Freud já havia cantado a letra: somos sujeitos castrados. Por sermos castrados, o poder sobre algo ou alguém se dissolve junto com o narcisismo que nos faz sofrer no contato com o amor. 

É no encontro do atrito da pele contra a pele, que construímos o mundo afetivo interno e externo. São as fantasias das expectativas que permitem que possamos ralar o coração, a pele e o corpo no encontro com o outro, com a existência para além da nossa própria íris. É através do toque e das relações com o outro, que aprendemos a compreender e sentir o nosso próprio mundo. 

Não é possível construir e aprender sobre si mesmo sozinho. Se faz preciso que o outro exista em sua singularidade, para que assim possamos tocar o mais íntimo de nós mesmos: o amor e o ódio são uma dessas vias. Muitas vezes amamos e odiamos o mesmo objeto em que endereçamos nosso interesse de vida. A luta é transformar o narcisismo em uma via possível para que o amor deslize e emita a sua linguagem nos corpos amantes. 

Os tombos se fazem necessários na construção de novas ideias, de novas rotas, de novos projetos e para o acesso do próprio inconsciente. No pior é que se constrói grandes ideias, grandes caminhos, e aprendemos a ser criativos com nossa própria vida. Transformando o nosso pior em ponte para que o nosso melhor possa renascer e pintar nossa história no mundo. 

Maicon Jesus Vijarva

17.3.19

SOBRE SABER E MATURIDADE



Em devaneios de pensamentos debato-me matutando quando é que iria ser maduro. A resposta: nunca. Não se trata de tornar-se maduro, mas desentulhar o caminho para que a experiência deslize e emita seus efeitos em nós. Não se trata de saber o que é a vida para começar a viver e alcançar a maturidade, mas tentar dizer para que se possa ser criativo ao viver a vida e seus efeitos.

A resposta que almejamos nunca virá, e se vir, não mais será suficiente para o tempo outro que já teremos alcançado. A maturidade é justamente a experiência do hoje, e alçamos ela vivendo entre o aprender errando e errar aprendendo.

A maturidade é desenvolvida pelo atravessamento da experiência bem-sucedida que o sujeito encontra na função materna e paterna. Quando não encontra esse ambiente citado anteriormente, o sujeito poderá contar com a sorte de topar pessoas que possam ocupar de forma satisfatória essas funções para poder acariciar as feridas e fazer das cicatrizes causa para continuar a existir e reinventar a própria vida.

O sucesso se alcança quando se aprende a fazer causa com o sofrimento, com a cicatriz que nunca será tampada com efeitos mágicos de pílulas e processos cirúrgicos. O sofrimento e dor podem ser a causa para grandes voos ou a ponta da lança direcionada a si mesmo. A luta nunca cessa. É preciso matar o leão por dia, porque ele não está na personificado na voz da imagem do outro e sim na projeção que fazemos do outro em nós.

Errar é importante e é o que nos leva a saber mais sobre o que estamos nos tornando. O saber é uma experiência e se transforma de acordo com os passos que oferecemos ao nosso inconsciente e, consequentemente, a nós mesmos.

20.2.19

ENTRE QUATRO PAREDES ESCURAS É POSSÍVEL ENXERGAR-OUVIR MELHOR


É tarde, o ponteiro interior aponta para um tempo avesso ao que se passa diante do olhos. Uma voz baixa, de tom pueril exclama aos gritos que a direção do caminho está precipitada. Loucura! É uma doideira só que atormenta e faz ecos. Às vezes parece que se está beira da loucura.

Escute só! Eu falo sério. Ouço vozes chamando meu nome. Um frio arrepiante na espinha-dorsal toma conta do corpo e emudece o som de socorro. Os joelhos fraquejam, mas o desejo não cede, mesmo encharcado de medo continua a percorrer o curso.

Amparado no desejo de continuar, insiste. Que garoto, que chatice de insistência. Mesmo que o corpo não queira, o desejo coça e chacoalha persistente. Burrice é tentar trapacear, as consequências são terríveis e deixam marcas no corpo. É como queimar a língua com algo quente, mas nunca mais irá passar.

O desejo deixa rastro, e ele soube ao ser avisado pelos sinais da sua mediocridade e desleixo com a própria existência. Custou algumas marcas, que são impossíveis de ver, ele as sente arder no significante da linguagem simbólica do seu corpo.

Nesse momento percebeu que não haveria palavras que suportasse a imensidão do que transbordava, inundava e dissolvia em si mesmo. A palavra não dava conta, no entanto sabia que ainda era uma possibilidade para dar lugares novos a própria história, mas sob um trabalho árduo, vagaroso e insistente.

O som da voz da analista o avisava:

Ficamos por aqui?

Até a próxima sessão.

16.2.19

O AMOR É UM ENCONTRO FÚNEBRE



Que maravilha! Agora vem você com esse sorrisinho imprestável, que me arrebata sem qualquer desejo de ser compreendido. Caramba, palhaçada sem graça. Aprender os efeitos da solidão em nós é capacitarmo-nos para viver melhor com o outro. Por que você faz amor sorrindo? Bobagem, isso que estou sentido não tem nada a ver com você. Sério. Falácia essa de amor à primeira vista. 

Eu naveguei em mares tão distantes, para me aproximou do início do conflito entre o ideal de mim e a minha falta que você me fez enxergar através da tua íris. Me afastei às pressas de tudo que eram pessoas carentes, para me esbarrar de novo no amor? Diacho, viu! 

Faz frio e penso em você. Sinto o gosto do teu beijo no escuro desse quarto que está infestado do teu cheiro. Que inferno é essa coisa de ser inundado por alguém que se quer conhece direito. OKAY! Vem com essa não superego, querendo dizer quem nem eu me conheço direito. Que não sou senhor do meu próprio corpo, casa. Sabia que essa coisa de ler Freud me levaria ao poço da loucura.

A minutes do único encontro de amor fez efeito que em anos de vida não havia sentido. Essa experiência de amar me faz desejar conversar com Deus. Que babaquice, estamos sempre a conversar com Deus, não é mesmo? Ao menos foi isso que Valter Hugo Mãe propõe em "A desumanização". Essa de Ateu? Nem vem com essa de Ateu. Ateu é um cara que vive a vida para dizer aos outros que Deus não existe, para ver se ele mesmo acredita nessa babaquice. 

Deus é algo que Descartes nomeia como uma parte soberana de nós. Embora tenha uns babacas que acreditam num Deus punitivo. Imagine a força do poder do Superego na vida desses sujeitos cheios de birra de si mesmo, deve ser pura devastação que sente por si mesmo.

Cada vez que reconheço o meu amor no outro, despenco minhas certezas de uma altura de 500 andares, o que resta são fragmentos que implicam em saber mais na minha miúdes no mundo. Aprendo a crescer sempre às voltas da experiência com outro, por ele ser não-todo faz com que coloque algo de mim para nascer o diálogo e assim nascer uma história de amor. O encontro com o outro, quando acontece, é sempre de amor e ódio. Aprender a fazer com os efeitos é que faz com que criemos vínculos que promovem o crescimento.

Sempre que me encontro com o amor, eu perco algo. Desencontro uma pessoa, um amor antigo, um sonho que não mais me cabe. O amor é foda, é meio fúnebre esses encontros e desencontros. Ufa, ainda bem que o amor me salva de mim mesmo.

Fico por aqui, acabou o café. Infelizmente. Até breve!

1.2.19

ENSAIO SOBRE O RETORNO


Retornar não é um caminho nada fácil, por desafiar e deslocar o próprio da singularidade à re[vi]ver estruturas que mexem com os afetos e traumas outrora narcotizados internamente. Desconstruir exige coragem, ousadia e generosidade. Ao demolir estruturas não estingue os efeitos do símbolo instaurado, convocando cada um a se haver com o furo, com o vazio que fica. O que resta dos nós de uma experiência catastrófica produz um saber, que não é qualquer.
Desatar nós é supor que se está rente ao corrimento da releitura da própria trajetória de um outro lugar, embora sempre haja uma confusão do lugar que se fala e do que se diz. Acompanhar os avanços do passado no tempo presente aspira na aposta do que se produziu ser dissolvido na foz, para fazer assinatura de sua reinvenção.
Os equívocos das recordações de acontecimentos [inconscientes] falham à compreensão, quando o imaginário e o real se cruzam ou colidem na tentativa de dizer e escutar o que angustia, emburrando o sujeito para os braços da brutalidade e da mais funda incompreensão do que o constitui.
Pelas palavras de Cyro Marcos Silva, é aí neste ponto que o sujeito desejante se torna desertor do Outro. Cabe-lhe então o teto de um deserto, sem um céu que o proteja. O desamparo é a cordilheira onde se situa a fonte e a nascente do desejo. Seu estuário é muito mais a incerteza de um mar do que o refúgio de um amar."

Maicon Jesus Vijarva

29.1.19

SOBRE A VIDA: PACIÊNCIA, OBSERVAÇÃO E TEMPO



Na relação da construção de laços afetivos consigo mesmo e, consequentemente, com o outro necessitam de um pouco mais de calma, paciência. Mesmo que a vida não pare. O tempo vive a acelerar, mesmo que debrucemos em carne, osso e pele para que a vida seja um pouco menos caótica, ou pouco mais leve. Lenine em sua letra-canção diz: um pouco mais de paciente, um pouco mais de alma...a vida não para, a vida é tão rara.

A gente espera do mundo e o mundo espera de nós, um pouco mais de paciência, ainda acrescenta Lenine. O corpo vive nos pedindo uma conciliação com a alma [ um dos nomes do Inconsciente]. Não é nada fácil sustentar uma vida, ela é rara e singular à cada sujeito, mesmo que partilhada em alguns momentos de existência. 

Os laços mais difíceis e trabalhosos são os que não podem ser rompidos sem deixar um rasgo e uma ferida que jamais poderá ser cicatrizada por completo. Lembro-me numa visita a um hospital, em que me vestia de jaleco branco com cara pintada e nariz de palhaço, fiz um homem com uma expressão triste, sorrir. Não ganhei um dia ali, mas algo despertou em mim um vazio insuportável. 

Não sabia ao certo a razão, eu chorei. Ele vendo algumas lágrimas mancharem minha máscara, disse sorrindo: a vida é muito difícil meu jovem. Eu não sei se vou morrer, mas de alguma forma morro aos poucos nessa solidão que eu mesmo criei para mim. O que fazer quando a vida te coloca à prova para refleti-la de forma nua e crua? Faltavam palavras que pudessem representar a imensidão que aquela experiência me provocava. Ainda sinto ela a cada experiência com meus pacientes. 

A vida é uma incerteza, e não há culpados, mas é preciso se responsabilizar pelo que fica, pelo que resta do resto de uma experiência. A minha atitude foi colher o seu sofrimento pela escuta, que naquela época com 15-16 anos, sequer sabia alguma coisa da vida, ou que essa atitude teria algum efeito ou mais ainda, que me esbarraria com a Psicanálise no caminhar do meu percurso.

David Levisky em seu Livro A vida?... É logo ali,Editora Blucher, implica ao escrever: a paciência, a observação e o tempo colaboram para que um e outro descubram a linguagem da relação que poderá ou não ser transformada em códigos sociais de comunicação. A espera de que eles nos compreendam conflita com a nossa incompreensão do que eles necessitam. Isso é desesperador e faz parte do processo de desenvolvimento. Querer alterar o processo é violentar a si e ao outro.

Escrever é um ato de coragem e amadurecimento dos próprios defeitos e qualidades.

Imagem: @gertscheerlinck

8.1.19

ENSAIO SOBRE O HORROR E A BELEZA DE SE DESCOBRIR HUMANO


Quando adolescente, Miguel com frequência fantasiava o amor. A sua primeira maior frustração dolorosa, foi sentir que não era possível segurar quem se ama em seu próprio mundo, e pior ainda, o alívio de não pertencer ao mundo do outro parecia tão frágil que acabava por vezes caindo de joelhos dominado pelo sabor agridoce da sedução de quem endereçava seu amor, ameaçando a sua própria singularidade e o vínculo ali estabelecido. 

Desde garoto sentia-se à margem dos grupos sociais daquela época, não tão distante deste presente. Admirava as bandas ABA, The Police, Prince, Michel Jackson, Queen, Pink Floyd, Madonna e tantos outros artistas que expressavam um desejo de descolamento da realidade possível de fantasiar um mundo outro que pudesse ancorar sua dor e sofrimento em existir. 

A rebeldia queimava seus olhos de desespero por não poder controlar o sentimento de amor que expandia sem limite e denunciava mais de sua falta. Sentia raiva e ódio pelas barreiras que impunham sobre a maneira de como desbravava a si mesmo e ao seu redor. Os erros e as frustrações transformados em lagrimas desobstruíram sua visão. Neste momento descobriu que quem mais impedia o seu crescimento era quem menos esperava, embora sentia no fundo do peito certa dedução a respeito: era ele mesmo. 

Tudo se tornou um pouco menos caótico, mas não mesmo doloroso e angustiante. Acolher e se responsabilizar pelo saber que se revelou e se fez tão verdadeiro, custava grandes perdas, e ele pouco sabia da dimensão da perda, embora tão jovem já tivesse perdido tanto. A partir desse momento algo mudou em seu interior, passou a se espantar pela vida e pelas experiências que o apresentava cada vez mais sobre sua singularidade, que nunca imaginou que lhe pertencia. 

Foi reconhecendo sua falta e o que acontecia de forma indomável, que Miguel pode entender que o outro é importante para que ele pudesse se perceber humano. Embora, tudo em sua vida não dependeria de ninguém, a não ser a ética com o seu desejo. 

Abraços,
Maicon Jesus Vijarva

5.1.19

O ESTILO ORIGINAL DE EXISTIR ESTÁ NA PRÁTICA EM TOLERAR A INCONSTÂNCIA DA VIDA



Desconfio da energia positiva que as pessoas buscam, em palavras, denunciar em gritos ao mundo. Não que seja de todo ruim, mas a vida é tão mais simples, caótica e indomável que se torna impossível e insuportável de sustentar essa eminente ideia utópica de que podemos controlar o que nos acontece em vida. A obviedade da vida é tão básica que chega a cegar, e acaba sendo um disparate acreditar que não podemos ter qualquer poder sobre ela. De modo simples, quando o humano coloca sua mão para modificar em sua literalidade a natureza, muitas vezes desencadeia um efeito reverso drástico à sua própria existência.

Decido a partir desse barulho que me faz dançar em movimentos reflexivos, escrever sobre a minha restrita visão e contribuir de alguma forma com um suposto saber disso que me borbulha à alma. A ideia é a metade de um todo, visto que não existe um todo-saber, mas uma ideia minúscula do que pode se tratar. O estilo original como podemos aprender nos escritos freudianos, lacaniano e essencialmente bioniano, depende da capacidade emocional de cada sujeito em suportar as adversidades da vida. Não sem um preço altíssimo a ser pago.

Acredito ser útil declarar que a repetição é única, por ser um movimento em espiral, e sem ela não somos capazes de transformar a própria vida, desobstruindo o caminho para que sejamos cada vez mais criativos na experiência que se desenvolve à nossa frente. Sempre falta alguma experiência, alguns cafés e muita loucura esquizofrênica para suportar a vida e transformá-la. Essa falta é constitucional, e se faz necessária para que o impossível seja possível de colorir.

Muitas vezes é próprio que se beba o café gelado que deixou esfriar. Não raro, a vida oferece uma experiência repetidas vezes, mas com um gosto não tão mais agradável, que, no entanto, traz consigo uma visão mais amadurecida de nós mesmos. Não nascemos com um manual de instrução. É preciso arregaçar as mangas, e os punhos para quem não tenha mangas, para viver a própria experiência e dar corpo ao próprio estilo original. Para isso é fundamental que cada sujeito em vida, seja capaz de acolher sua própria dor, reconhecendo as próprias ferramentas que possuem para então lançar-se em vida e apostar tudo em si mesmo.

Além dessa constância, é importante que sejamos tolerantes e amáveis com as próprias fraquezas, inseguranças e dificuldades, pois ninguém nasce pronto para aprender a suportar as dificuldades da vida. Não será a primeira e última vez que cada um de nós, humanos, nos sentiremos como um E.T frente aos dissabores que surgem, quando se arrisca em apostar tudo e até mesmo o que não se tem em si mesmo e nos próprios sonhos.

A persistência em trabalhar para desobstruir o caminho, traz uma fluidez para que a criatividade em fazer melhor com a experiência ocorra de forma natural, que se torna impossível de descrever em palavras, por falta de vocabulário. Somente a prática e a tolerância com as inconstâncias da vida farão com que cada sujeito em vida seja capaz de reconhecer e transformar o seu próprio estilo de existir.

É atravessado pela capacidade de ser amável com a própria dor e mazelas que se torna possível intuir e reconhecer a profundeza da experiência de vida dos outros que compartilham a vida conosco. O amor é a experiência que nos leva a uma vida possível de ser vivida.

Grande abraço carinho,
Maicon Vijarva