23.7.20

ÀS VEZES AVANÇAR É SOLTAR AS RÉDEAS E SE DEIXAR ULTRAPASSAR

@marcosquinoza
A página em branco do começo de uma análise é, de modo geral, uma ideia que, embora assustadora, pareça ser um ato corajoso para um sujeito que inicialmente traz como escudo de proteção o slogan de querer se autoconhecer. Essa ideia logo vai se dissolve com o passar das sessões e o sujeito começa a perceber que sua busca por uma análise é de outra ordem, que toca o impossível de ser dito em palavras, e por faltar vocabulário ele busca inventar para tentar dizer o que o estrutura e, talvez, nesse processo descobrir fragmentos sobre si mesmo. 

O sentimento de dor e ruína nos atravessa e convoca ao movimento implicativo de promover uma mudança catastrófica urgente e necessária para continuar a existir. A análise funciona como uma espiral gradativa, entrar de cabeça nesse processo nos faz acessar do pouco ao muito, do raso ao profundo – de forma desmedida – a própria loucura, o trágico, a vida. 

Tal ritual de brincar de inventar palavras para contar de si mesmo promove uma queda das ideias pré-estabelecidas, que conduz o sujeito a observar a fragilidade da vida; nessa mudança de vértice faz o sujeito no mínimo a buscar a restabelecer condições mínimas necessárias para o cuidado e cultivo com a vida, para suportar suas adversidades. 

Na análise o sujeito é provocado por seu próprio discurso a produzir questões ao invés de respostas, a trabalhar com aquilo que Nietzsche se interesse e que Viviane Mosé traz no seu livro (1): a natureza que traz em seu próprio corpo e que o constitui. Percorrendo a própria história de vida procurando o que está escondido por trás da cultura familiar e os valores que reproduzimos ser percebermos essa repetição. 

Talvez uma análise seja uma busca difícil, por nos levar a nos esbarrar com o vazio, a falta, o desamparo, a insignificância, os restos de experiências que tatuaram em nós algo que necessita de colo, acolhimento, cuidado e nutrição. O sentimento oceânico que necessita de suas quedas nas praias de uma escuta do outro, para que o sujeito possa aprender a escutar o que ressoa para além de suas palavras. Não é fácil trabalhar com os sentimentos, tanto Freud quanto Bion deixam isso bem claro a partir de seus escritos. 

Tal manifestação me faz recordar de uma citação de Freud de um dramaturgo em O Mal-estar na Cultura (2): “Não podemos cair para fora deste mundo”. Um sentimento de ligação indissolúvel e um pertencimento à totalidade do mundo exterior. Não dá para deixar de sermos quem somos, podemos nos iludir até o pescoço e adiar pensar o que nos estrutura, o que sempre nos leva a pagar no final um alto preço. 

Ao caminhar numa análise é possível aprender a falar de si mesmo, a se esbarrar com o inconsciente e seus efeitos que atravessa tudo que fazemos conosco e com o outro. Isso que se escreve numa análise nos faz recordar, repetir e elaborar através de uma reescrita, em que se inicia o processo criativo de inventar a si mesmo. 

Maria Homem traz isso bem implicativo em sua obra (3), que a arte, o processo criativo, a música, a filosofia, a psicanálise não nos salvam do trágico, da loucura, da vida e de si mesmo. A análise nos provoca a sentar do lado do inquietante e suportar seus efeitos no limiar do silêncio. Falar é também fazer pausas. Quando falamos transitamos por direções avessas ao que horizontalmente éramos capazes de perceber no início do ingresso em uma análise. Às vezes o que nos faz avançar numa análise é soltar as rédeas e se deixar ultrapassar pelo que tentamos escrever ao falar. 

Tenho aprendido muito com alguns escritos de Wilfred R. Bion (4) e a minha experiência na clínica; um desses aprendizados é que numa análise o mais importante é o ambiente acolhedor, em que se aprende como lá em Winnicott, a gestar os pensamentos, a si mesmo e o outro. Suportar a si mesmo na presença do outro pelas pausas cheias de um silêncio que implica a se acolher na aparição do vazio sempre desconhecido. 

Maicon Vijarva ⠀ 
@acuradefreud 

Referências 

(1) Mosé, Viviane. A Civilização se olha no espelho. Nietzsche Hoje: sobre os desafios da vida contemporânea. Vozes, 2018. @editoravozes 
(2) Freud, S. (1930). O Mal-estar na cultura. Editora Autêntica. 2020. @autenticaeditora⠀ 
(3) Homem, Maria Lucia (1969). No limiar do silêncio e da letra: traços da autoria em Clarice Lispector. Boitempo: Edusp, 2012. @boitempo 
(4) Bion, Wilfred R. Seminários Italianos. Blucher, 2017. 
(5) Winnicott, Donalt W. (1896-1971) Bebês e suas mães. Ubu Editora, 2020. @ubueditora

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