17.7.19

descascar de si mesmo

Descascar laranjas não constitui trabalho simples. Há necessidade de criatura arteira – arte de insistir em presença dos pequenos fracassos – em fazê-lo melhor e bem feito. É inoportuno conceber de qualquer jeito; há de se ter cuidado no improviso do manuseio de uma faca, para a circulação precisa nos movimentos dos cortes, caso seja por miséria de tempo. 

Fitando o cuidado da mãe em descascar as laranjas e nos olhos suspensos num tempo outro daquele momento, o garoto com receio de tirá-la de si, questiona: para que tanto trabalho em arrancar as cascas de uma laranja? Suspensa no tempo, ainda que tivesse na alteridade daquele momento, ela volta em si e responde: aprendi com seu avô, ele gostava de ver as laranjas descascadas com cuidado, deixando o mínimo da brancura para protege-la. 

Descercar laranjas não constitui trabalho simples. A brancura que se falava era o albedo: última “pele” que agasalha o interior da laranja. Interior coeficiente de reflexão, refletividade difusa ou poder de reflexão, camada fina o mínimo para servir bem a si mesmo, a família e as suas visitas. Assim também não seria nós, humanos, na constituição de laços consigo mesmo e com o outro? 

Brancura de um véu albedo que protege, para que seja possível saborear o não-todo de uma coisa à outra, de um tu em mim, de um mim em tu, velados por um limite necessário para não se dissolver no todo – do outro? –; embora seja impossível. De uma maneira ou de outra, há sempre uma falha, um rasgo, um descuido no manuseio da faca no movimento do corte no coeficiente albedo de uma reflexão. O corte é inevitável, não há como fazer suturas nas vesículas interna de uma laranja, mas é possível aprender a saboreá-la com cuidado ao digeri-la. Assim não poderíamos ser na vida, mãe? 

A mãe é acesa ao seu tempo e olha com mais carinho para o tempo de menina sonhadora na presença de um pai misterioso e ignorante de sua sabedoria cotidiana. Ou será que tinha consciência desse saber? Sei lá, talvez a vida seja só um detalhe, um inventar que tentamos escrever quase sem palavras, mas não sem elas.

Maicon Jesus Vijarva

12.7.19

resto que permanece ressoa

Em seu pior momento da vida, encontrava-se em estado esgotável da natureza humana. Nesses agraves, necessitava deixar escoar até a última gota do insuportável de sua tristeza. Extenuado e sem qualquer ânimo, trajava o seu horror ao se colocar em convívio social. Não havia energia para opinar ou pensar nos adornos de amor próprio para seguir bem arrumado aos olhos dos Outros. Era só mais desserviço com ele mesmo, mais uma traição para conta. 

Perto demais de ser petrificado, foi capturado pela imagem dos passantes e vê em cada um deles o seu horror refletido. Pressentiu uma leve pontada de angústia no peito, achou que fosse um AVC. Para seu azar, não era. Em estado de vertigem, cobiçou embarcar em qualquer ônibus para mudar a rota e se livrar de tudo que estava alcançando. 

O sofrimento é mais latente e estranho de caber nas palavras, mas sabia que era respeitável apostar na criação de palavras para não enlouquecer em si mesmo. Era através desse esforço de se fazer dizer, que inventava laços para além do habitual. Necessitava do toque de um outro, alguém que pudesse oferecer um olhar mais amável e menos sufocante para escuridão. 

De dentro da tempestade é possível se fazer saber sobre o indomável de nós mesmos. Precisava embarcar no próximo ônibus, que indicava para direção da responsabilidade com a própria história, com o acaso e a surpresa que a vida trouxe e trará. Detalhes irão transformá-lo pouco a pouco, não por completo. O passado faz sempre presença, e sabe que caberá a ele fazer melhor com isso que se desenrola no depois que se escreve sem sua vontade. 

O ônibus chega, reluta aflito se será capaz de suportar o caminho. O medo de ser medíocre era mais ululante que fracassar. Desatento, entra e se senta com vontade de desistir. Acelerado, percebe lentamente o ônibus ganhar movimento, já não dá mais para fugir. Nem tudo está perdido, depois de uns tombos, perdas e lágrimas salgadas, pode-se saborear o amargo do saber que emerge de retalhos que ficam, na tentativa de criar coisa outra para se fazer existir. O resto que permanece ressoa certo mal-entendido, sensato contorno que implica desejo e um provável impulso para o próximo ato.
                                         
maicon jose de jesus vijarva
txt escrito para @aconfrariadostrouxas. 

5.7.19

diabetes: a doçura acumulada


Na alteridade do seu interior, ela sentia uma responsabilidade em viver. Embora a conta jamais fechasse, ela levava a vida sempre a se cobrar sob o grande olhar do Outro. Ainda que soubesse lá no fundo, confiava que esse outro não fosse a sua própria criatura, mas algo que fazia morada do lado de fora de si. Mulher profunda, uma grande menina sonhadora. A realidade sempre fora cruel, mas não mais que ela consigo mesma. Ela conseguia se ferir mergulhando de cabeça no ideal que a matava pouco a pouco. A religião foi sua aposta de volta por cima, na reviravolta que a vida sempre lhe trazia como oferta de ressurreição. No entanto, estava tão mergulhada nas palavras que soavam seguras da boca dos lobos vestidos de cordeiros, que o inquietante estranho que a habitava se transformou em inimigo declarado. A vida sempre fora injusta, mas ela não se poupou em fazer pior por si mesma. Escriva sobre si em fragmentos que ressoavam entre a carne, alma e o que imagina ser ou vir a se tornar. Tudo era muito profundo e ela insistia mesmo permanecendo por si mesma afogada em seu estomago, inundada pela doçura que economizava nos dias de vida. Havia muita doçura acumulada, ela não contava que essa mania obsessiva de acumular se tornaria uma diabetes mellitus tipo 1. As complicações foram de certa maneira uma espécie de alívio. A vida lhe era muito cara, e ela já não produzia mais insulinas criativas para sustentar o seu corpo simbólico. A vida nos exige e é necessário tolerar o cair do símbolo, para que o simbólico se reproduza de outras maneiras menos sorrateiras no corpo que tenta recitar palavras que ainda não existem.

um abraço, 
Maicon Jesus Vijarva

2.7.19

DIAS COMPRIMIDOS

Desabraçar o que mais se amava, às vezes é a forma mais lúcida de amar. Não se trata de uma questão de escolha, talvez seja mais por sobrevivência mesmo. Você certamente já deve ter convivido com esse assombroso sentimento de limite entre viver ou morrer simbolicamente. Talvez a saúde física seja mais consequência de alguns não que aprendemos a dizer mesmo com medo de que tudo desmorone. 

Dizer não dói na pele, faz furo impossível de tamponar por toda alma, ressoa os equívocos no simbólico do corpo. Esvazia dos excessos. O dizer velado nessa palavra minúscula não é qualquer, tem peso e medida, e há o risco de que tudo escorra pelo ralo no mal-entendido que ecoa em som pesado no próprio ouvir e no ouvir do outro. 

Recuso ficar adormecido, tudo na vida tem limites. Viver dias compridos e tentar comprimir a realidade deixando-a minúscula com os efeitos desse comprimento positivista e passivo é o atentado mais massacrante que pode-se tentar contra si mesmo. A vida não tem nada de bela, mas desejar não sentir a dor socando goela abaixo uma substância não tornará a vida mais bela mas mais ainda o pior do seu horror. 

Prefiro continuar a ser esquizofrênico por inventar uma realidade paralela ao ter que me sujeitar a esmagar os meus dias em comprimidos que dizem poder salvar-me de mim mesmo. Isso é blasfêmia. A vida urge e exige de cada um de nós o mínimo: aprender a falar do que dói, e não onde dói; a tentar dizer mesmo que não existam palavras. 

Se fomos tão criativos em criar um comprimido que alivie o sintoma, podemos muito bem aprender a salvar a nós mesmos através dos mal-entendidos que aprendemos a ouvir quando aprendemos como falar melhor para nós mesmos e, como consequência, também para o outro. 

Talvez, mas talvez mesmo... a análise seja para o psicanalista a aposta de que o sujeito aprenda nos dejetos de sua fala endereçada ao analista, aprender a falar com o que resta do dejeto da fala faltante do seu vazio. E meu caro, o que resta é sempre o pior, e haja sabedoria para criar desse lugar.

Maicon Jesus Vijarva