A realização não
é de toda semelhante aos planos sonhados. É desse furo pode ser possível criar
algo diante da frustração. Lugar disponível para pensar melhor o próprio corpo
que transmite os ventos dos pensamentos sob os efeitos do imperfeito que
implica um real. Nada romantizado. Livremos desse engodo fantasmagórico que
levam muitos à alucinação. Acredito que seja muito importante aprender a tornar
suportável essa quietude obrigada que estamos experimentando. Observar melhor a
si mesmo, mas de uma forma interior mesmo, sem se perder no reflexo errôneo do
espelho. Algo que esteja mais distanciado do slogan de “autoconhecimento”, que
seja mais sobre andar no assombroso, nas imperfeições e nas coisas que não
funcionam muito bem em nós, que muitas vezes molduramos e colocamos um pano por
cima para não ter visão disso que causa angústia e aflição. Alguma coisa na
ordem do que tratou de descrever Oscar Wilde em sua brilhante obra “O retrato
de Dorian Gray”.
Por mais que
vivamos na situação de uma quarentena desprovida de alegrias e novos discursos,
o tempo não dá pausas, a vida continua a lutar pelo seu ecossistema. A natureza
não deixará de gerar vida; não irá cancelar a primavera e suas outras estações,
até porque o próprio vírus é o efeito de que a vida insiste em transmitir
alguma coisa na qual ainda não conseguimos compreender muito bem. Embora estejamos
implicados numa quietude obrigatória, viver é uma questão, e quando digo viver
é também colocar o sofrimento e a dor com essa insuficiência de recursos
internos e externos para lidar com esse momento que nos atravessa. A vida não
foi cancelada, apenas adiamos os planos e quando for possível voltar no depois
disso tudo, seremos outros, talvez possamos aprender a pensar melhor o que são
esses planos, se são nossos ou tornaram-se nossos por uma demanda do outro por
nós acolhida.
Estamos aqui,
todos juntos numa mesma situação lidando cada um a isso de uma forma subjetiva.
Fomos obrigados a ficar onde nos encontrávamos, seja uma casa, um bairro, uma
cidade, um país ou qualquer outro lugar ou sem dúvida em nós mesmos. Nada disso
é prazeroso, tampouco aprender a conviver mais de perto com os detalhes do
próprio que existe em nós mesmos. Todo esse encontro nos faz lidar com os desencontros
e com seus efeitos sozinhos, mesmo que estejamos vivendo um momento de caos
coletivo.
Nada mais é como
antes. O espanto se renovou e tudo ganha um lugar desconfortante, misterioso e
com grande dose de angústia; algo estranhamente familiar desperta. Aponta para
um horizonte que como um efeito bumerangue nos devolve questões. Agora não há
mais pressa, hoje temos tempo para acolher nossos restos e as memórias feridas.
As coisas se aproximaram mais, embora estejamos separados fisicamente. A lentidão
nos convoca a enxergar o que o espelho não reflete: os vazios, as faltas e os
buracos impossíveis de serem preenchidos e aos detalhes que passam despercebidos
com os dias corriqueiros.
É tempo de uma viagem em lugares internos. Momento de
misturarmos nossas memórias com as memórias de outros sejam elas reais ou
imaginárias. Um movimento cirúrgico. Apontemos os lápis para continuar sem
pressa a fazer movimentos de uma escrita falada; criando a partir das nossas
recordações dando um lugar novo, reeditando nossa história com um olhar menos rígido
e cruel.
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