22.5.20

NOTAS À DERIVA

Sonhar nos possibilita criar um caminho para tentar aos trancos e barrancos percorrê-lo, que os passos nos levam sempre em lugares outros imagináveis. Muitas vezes os desencontros nos possibilitam recalcular rotas e dar novos rumos ao embrião de um sonho que insistimos em dar movimento vital aos passos. No entanto, às vezes nossos sonhos vão ralo abaixo, sem tempo de resgatar um fio de cabelo sequer. Dissolvidos pelos canos dos ralos, o fantasma dos nossos sonhos nos jogam à mercê do nosso pior, numa fonte repressora que está à espreita para nos abocanhar. Lançados à sorte, nos resta juntar tudo que se espalhou na carcaça do corpo e viver um momento recluso com a tristeza de perder tudo e um pouco mais de si mesmo nesse indesejável isolamento compulsório.

O desespero por um tempo nos abraça com uma força inestimável; calados ficamos por  dias necessários: perdermos o interesse pelo mundo externo - e até de nós mesmos -, não dá para ser inteiro e nos amar a todo momento, é humanamente impossível. Embriagados desta desilusão de controle sobre tudo, somos encorajados a saborear a nossa insignificância no mundo. Fazer da quietude um momento suportável para olhar o que nem o vento e nem o tempo levarão consigo: os nossos restos. Eles permanecem, vão se amontoando e esperando a oportunidade de um fazer ressignificar. Estamos gestando uma invenção, logo emergem ideias sob o efeito melancólico,  para inventar com os restos que estavam esperando sua reciclagem, e os novos que virão no depois disso que escapa diante da escassez de tudo e de nós mesmos para nós mesmos. 

Só o amor não basta para viver a vida, é preciso de um pouco mais de nós mesmos em cada passo que damos ao imprevisível: a vida. É necessário que a vontade de existir - o desejo - esteja a todo vapor e não ceda e se sustente até a última gota de ar que possa existir de um corpo com vida em direção à morte. Que sejamos corajosos a se deixar cair da imagem idealística, e ousados a se ajoelhar para enxergar e sentir a própria desimportância frente ao mundo. E que isso nos faça corajosamente recordar dos símbolos dos abraços e palavras cheios de ternuras dos que um dia pudemos estar mais aconchegados, e que esse mínimo seja fôlego para aliviar o coração e o corpo em tensão.

Na melhor das hipóteses, aprenderemos que nossa maior riqueza é a nossa falta, e que desse lugar de faltantes podemos aprender a criar vida diante disso que nos convoca a escrever história atravessados de nossa própria estória: que escapa aos dedos e a razão: viver.

14.5.20

NUMA QUIETUDE OBRIGATÓRIA, VIVER É UMA QUESTÃO


A realização não é de toda semelhante aos planos sonhados. É desse furo pode ser possível criar algo diante da frustração. Lugar disponível para pensar melhor o próprio corpo que transmite os ventos dos pensamentos sob os efeitos do imperfeito que implica um real. Nada romantizado. Livremos desse engodo fantasmagórico que levam muitos à alucinação. Acredito que seja muito importante aprender a tornar suportável essa quietude obrigada que estamos experimentando. Observar melhor a si mesmo, mas de uma forma interior mesmo, sem se perder no reflexo errôneo do espelho. Algo que esteja mais distanciado do slogan de “autoconhecimento”, que seja mais sobre andar no assombroso, nas imperfeições e nas coisas que não funcionam muito bem em nós, que muitas vezes molduramos e colocamos um pano por cima para não ter visão disso que causa angústia e aflição. Alguma coisa na ordem do que tratou de descrever Oscar Wilde em sua brilhante obra “O retrato de Dorian Gray”.

Por mais que vivamos na situação de uma quarentena desprovida de alegrias e novos discursos, o tempo não dá pausas, a vida continua a lutar pelo seu ecossistema. A natureza não deixará de gerar vida; não irá cancelar a primavera e suas outras estações, até porque o próprio vírus é o efeito de que a vida insiste em transmitir alguma coisa na qual ainda não conseguimos compreender muito bem. Embora estejamos implicados numa quietude obrigatória, viver é uma questão, e quando digo viver é também colocar o sofrimento e a dor com essa insuficiência de recursos internos e externos para lidar com esse momento que nos atravessa. A vida não foi cancelada, apenas adiamos os planos e quando for possível voltar no depois disso tudo, seremos outros, talvez possamos aprender a pensar melhor o que são esses planos, se são nossos ou tornaram-se nossos por uma demanda do outro por nós acolhida.

Estamos aqui, todos juntos numa mesma situação lidando cada um a isso de uma forma subjetiva. Fomos obrigados a ficar onde nos encontrávamos, seja uma casa, um bairro, uma cidade, um país ou qualquer outro lugar ou sem dúvida em nós mesmos. Nada disso é prazeroso, tampouco aprender a conviver mais de perto com os detalhes do próprio que existe em nós mesmos. Todo esse encontro nos faz lidar com os desencontros e com seus efeitos sozinhos, mesmo que estejamos vivendo um momento de caos coletivo.

Nada mais é como antes. O espanto se renovou e tudo ganha um lugar desconfortante, misterioso e com grande dose de angústia; algo estranhamente familiar desperta. Aponta para um horizonte que como um efeito bumerangue nos devolve questões. Agora não há mais pressa, hoje temos tempo para acolher nossos restos e as memórias feridas. As coisas se aproximaram mais, embora estejamos separados fisicamente. A lentidão nos convoca a enxergar o que o espelho não reflete: os vazios, as faltas e os buracos impossíveis de serem preenchidos e aos detalhes que passam despercebidos com os dias corriqueiros. 

É tempo de uma viagem em lugares internos. Momento de misturarmos nossas memórias com as memórias de outros sejam elas reais ou imaginárias. Um movimento cirúrgico. Apontemos os lápis para continuar sem pressa a fazer movimentos de uma escrita falada; criando a partir das nossas recordações dando um lugar novo, reeditando nossa história com um olhar menos rígido e cruel.