Só um milagre faz da destruição uma forma de esperança.
Luiz Felipe Ponde
Amor
e ódio são sentimentos responsáveis por promover a união de partes, a ligação
das faltas que não se completam, mas unem-se para criar algo com a imensidão
que essa junção acende [provoca] em cada um de nós.
São
sentimentos que guardam em si uma função de sustentar duas ou mais pessoas em
um laço amoroso ou amigável, e também revela em seu desdobramento uma variação
que não se prende em saberes, por isso merece um olhar mais cuidadoso.
A
rapidez do quotidiano e das relações instantâneas nos impossibilita muitas
vezes de pensar melhor, repensar com mais cuidado nossas relações com aqueles
que nos unimos para desenhar um percurso. Acreditamos muitas vezes que estamos
ligados intimamente a alguém, e muitas vezes possuímos uma rasa capacidade de
reconhecer e/ou questionar os efeitos dessa função de vínculo na qual estamos
ligados.
Se
a possibilidade de pensar melhor emperra, talvez também seja muito difícil
perceber e atribuir às consequências que esses vínculos podem gerar em nossa
vida psíquica. É desastroso estar ligado
profundamente a alguém que pouco conhecemos e, mais ainda, não conseguir nomear
através da linguagem a dimensão e a qualidade de identificação desse vínculo
tão importante em nossa vida.
Além
desses laços direcionados a alguém, existem os grupos, coisas, objetos e também
a forma como nos ligamos e relacionamos com o dinheiro. Este ensaio busca
fazer-saber sobre a ligação que pode ser construída e cultivada entre o eu e o que
se encontra para além dele.
Através
desta experiência podemos chegar ao conceito que a qualidade de qualquer
vínculo constituído com o outro dependerá da forma como somos capazes de nos
relacionar com nós mesmos. Quando dois corpos se unem, inconsciente procuram
encontrar nessa experiência de identificação algo que está na ordem do que lhe
falta.
A
capacidade afetiva de cada ser humano é o que poderá ampliar esse vínculo
primário de identificação narcísica para algo que se encontra além, em que
ambos possam se desenvolver subjetivamente sem se perder na expectativa do
vínculo primário.
O
laço amoroso é um processo de construção muito delicado, que implica a partir
de uma demanda interna, muitas vezes árdua e pouco [quase nada] elaborada, para
esboçar um percurso. Como bem instrui a psicanálise, o início de qualquer
vínculo com o outro ocorrerá através de identificações entre as partes e algo
muito além que não é possível de ser nomeado.
Há
algo no outro [objeto de desejo] que parece preencher a parte que falta no
sujeito, oferecendo um sentido outro ao seu vazio. O amor na relação amorosa obstrui
muitas vezes quando o amante economiza para que não ocorra a escassez de seu
amor para seu objeto amado.
O
amor é uma contingência e não há uma ciência sobre ela. Pondé (2017) nos implica a
refletir mais ainda sobre a possibilidade do amor, quando descreve:
Para lidar com a contingência, acumula-se alguma sabedoria, e onde há ciência, normalmente, falta sabedoria e sobra certeza. [...] o amor entra pela fresta da porta. Nunca é convidado, mas toma todo o ambiente quando é notado. Encanta pela sua força vital. Pelo desejo de vida que traz consigo.
Por
isso, que quando o sujeito ama acredita estar à beira de encontrar a melhor
versão de si mesmo. E essa experiência pode ser muito destrutiva para muitos
outros, que não conseguem lidar com a dimensão desse amor que não pede licença
para entrar.
Na
relação amorosa, quando digo “eu te amo”, digo também “amo a mim mesmo através
de ti”. Freud é muito preciso ao escrever: quando escolho amar o Outro, escolho
amar quem representa a imagem ideal do meu Eu. Podemos expandir um pouco mais
com a reflexão de Recalcati, quando diz que o amor pode ter várias faces, e uma
delas é sem dúvida é a face do embuste, da cegueira, da sugestão, da hipótese,
do enamoramento narcísico.
Não
é exagero dizer que nos aproximamos das pessoas e coisas muito mais pela
expectativa do que imaginamos que elas sejam do que realmente são. O processo
que conduz uma construção de laço amoroso verdadeiro necessita contar com um
período de dedicação mínima que seja ao reconhecimento básico das partes, que
está depois da experiência da identificação.
Segundo
Martino, nessa fase do desenvolvimento do laço amoroso existe uma tênue/tenaz
fragilidade naquilo que une as partes, que se encontram nesse momento
severamente vulneráveis. A construção e
desenvolvimento do verdadeiro laço amoroso necessitam ser sempre um processo
lento e que demanda extrema dedicação, por sua origem ser totalmente delicada.
A
realidade última [vazio] promove o pensar melhor a respeito do que nos falta.
Só somos capazes de pensar sob a experiência do vazio, implicados pelo
movimento que falta nos convoca. Mas, como toda reflexão, provavelmente o
sujeito pode ser impulsionado pela urgência de sua fragilidade emocional
confundir o nó de uma relação perversa [alienação] com um laço amoroso.
Adoecido
emocionalmente na autoestima, o sujeito encontra-se incapaz de duvidar, questionar
ou de fantasiar. O ser humano fragilizado buscará estabelecer um modelo de
vínculo no qual inviabilizará qualquer possibilidade de desconfortos ou tentará
encontrar em nome de garantias um comodismo mórbido que obstruirá o contato com
a fragilidade que dá cor a vida.
O
nó da alienação está anos luz distante do objetivo [individual e partilhado]
característico da expansão, desenvolvimento e transformação das partes de um
laço amoroso. O sujeito fracassa no vínculo com o outro, por acreditar que seu
nó alienado [perverso] seja um laço amoroso, o que impossibilita de fazer-saber
sobre si mesmo pela incapacidade de sequer suspeitar de quem realmente seja.
Existe
dois modelos de alienação em que podemos nos escorar e fazer morada. O primeiro
é quando inseguros de nós mesmos nos unimos ao outro numa ligação parasitário-dependente, tornando-nos
parte do outro. Nessa ligação perversa buscamos nos tornar parte daquele do
qual estamos vinculados, para não nos responsabilizarmos por qualquer
eventualidade do atrito saudável [mesmo que de forma frustrante], que um laço
amoroso pode oferecer.
Em
seu avesso há um modelo de falsa alienação, que se baseia no domínio-controlador,
impondo que o outro seja parte de nós mesmos e nada mais que isso. Para Martino
(2013), o sujeito incapaz de desenvolver certas funções, utiliza-se do outro
para isso, perdendo o direito de ser ele mesmo, porque parte de si encontra-se
sendo desempenhado por outrem.
A
vinculação através do nó alienado faz com que o ser humano assuma uma posição
de própria negação, que o leva a tornar-se cada dia mais carente de si mesmo,
censurando o eu para que o outro possa existir. Na aliança perversa ou nó
alienado, o funcionamento mental enfraquece sua capacidade de pensar e repensa
melhor sobre si mesmo, o que intensifica ainda mais a própria alienação,
atando-se mais ainda a dependência em favor do estado de desesperança.
Ligações
como essas cultivam um fruto deficiente de nutrientes e extremamente vulnerável,
por levar o peso das marcas amargas em sua raiz. E o que nasce dessa relação
alienada-perversa, totalmente ausente de cuidado e amor, poderá viver numa
espiral de repetição constante nas próximas gerações, contando apenas com a
sorte de encontrar pelo caminho um amor que possa desconstruir essa linhagem
perversa.
O
impossível pode parecer uma linguagem que nos inibe de pensar além de sua
fronteira, mas existe a esperança de transformação. No entanto, para que essa transformação
ocorra é necessário que possamos ser capazes minimamente de suportar a
devastação que o processo de desconstrução irá implicar em nesse momento da
vida.
Esse
percurso só é possível através da experiência de um amor que entra sem ser
convidado ou da busca pela análise, na tentativa de falar sobre o que atormenta
a alma e o corpo e, assim, fazer-saber sobre o que há por trás do sintoma, para
poder ingressar na experiência de elaborações promovida pelo movimento
analítico e então poder saber-fazer melhor com o que trava e inviabiliza a ação
da existência no próprio percurso de vida.